O menino
oscila vagarosamente a vara de pescar, fazendo a linha formar círculos
concêntricos na superfície da água. O pequeno não pisca. Se piscasse, perderia
o momento. Aquele infímo centésimo de segundo no qual sustentamos toda a leveza
que carrega uma certidão de completude.
Passa
o peixe, vagaroso, ressabiado. Vê-se comida na superfície, é fato. Mas nem tudo
que brilha é ouro, nem touro nem mouro. A fome vai deslizando pelo estômago do
bicho. Se tivesse pálpebras, piscaria ininterruptamente. A dúvida, o sim do
talvez para que não antijamos assim um não muito depressa. Porque a negação
seria a rápida privação do alimento e o sim seria a aceitação de um risco
talvez grande demais – a vida por um pouco de comida?
Eis que passa lépida
pelo horizonte
uma nuvem dessas bem grandes e
bem brancas.
Ela com certeza não dotara-se de
nenhuma forma,
porque são os olhos que proveem
formas e nomes às coisas,
jamais o contrário.
Ela sobe, desce. Encobre
parcialmente o sol.
Depois regressa, submissa.
Se pudesse, desceria ao chão,
gritando
Peixe besta, sai de perto desse buraco que o diabo vai te comer!
Mas nuvens não falam, peixes não
pensam
e o garoto permanecia pétrico.
Mais
uma oscilada, dessa vez mais branda. As mãos do menino são libertas de calos,
alforriadas do peso futuro advindo da labuta. Seu pai é pedreiro. Dizem que ele
busca lá no pé de Drá o seu trabalho diurno (e diuturno) para fazer o sustento
de seus rebentos. Por óbvio, assim como rebenta a manhã discreta, rebentam ao
mundo as crianças aos murros e aos urros ainda cobertas de sangue.
Peixe
vai
Peixe
volta
Dúvida
cruel. A questão, que questão? Os instintos privam o peixe de um raciocínio
mais objetivo. Naqueles cantos lodosos do rio a visão é feita curta e a busca
por proveitos – assim como faz o pai do menino no pé de Drá – é dificultada. Já
uma vez viu-se morrer um peixe, tal qual não nome tinha porque peixe que se
sabe por peixe é desprovido de nome e de seguro desemprego, enroscado até a
garganta num anzol. Mas o que é anzol? Peixe que se sabe por peixe desconhece
tal vocábulo tão rebuscado. O que ele sabe é sentir. E sente, no momento, fome.
Os
olhos do meninos movem-se na velocidade da luz. Procuram o fundo do rio, mesmo
sabendo que só conseguem alcançar o reflexo pousado na superfície do lago desde
que o mundo é mundo.
Mas é válido ressaltar que,
quando o mundo era mundo
lá pelos primórdios de qualquer
coisa,
a reflexão não existia.
Esse tal ato de consciência que
interpreta as sensações
e cataloga sistematicamente tudo
que se vive.
Pois então,
o reflexo pousado na superfície
não existe desde
que o mundo é mundo.
Ele podia ser tal como fenômeno.
Mas não o era enquanto captação
consciente
porque ainda era desprovido de
nome e de classificação.
Claro, como tudo era na vida
naqueles tempos.
Mas
voltemo-nos ao menino, como já por antes dito: pequeno e pétrico. Talvez filho
direto do pé de Drá (homens são frutos reprimidos e frenéticos). Parece ele por
fora um semblante de serenidade. Imóvel, ignoto, tal qual uma qualquer planta
que verdeja-se todo dia por hábito e por fome.
Mas, por dentro...
É guerra. Desejo, desespero.
Um jorro rápido de insegurança e
impaciência.
Estaria o anzol bem posicionado?
O tempo lastima-se vagaroso
no pesar do insucesso.
Há tempos? Muito tempo?
Talvez aqui os minutos
equiparem-se aos séculos.
A
mente do peixe divide-se. Deve-se arriscar a vida por um naco de energia? O
paradoxo da reflexão: a privação da energia pode encurtar ligeiramente a vida,
enquanto a negação dessa mesma energia pode fazer a vida muito mais longa.
Sim. Não. Não. Sim...
Talvez... Seu pequeno coração
bate mais rápido.
O
peixe, por se considerar destro, arremessa-se ligeiro para cima da comida.
Calcula bem o salto, fixa bem a amplitude e o tempo de regresso. Cuva-se
presto, contrai seus músculos.
Porém,
para a felicidade do pequeno e para o antônimo do proto-defunto, o menino é
mais rápido e mais treinado do que o peixe. O que antes era rocha dura milésimos
para transformar-se em uma cascata de movimentos.
Puxar a vara.
Girar o ombro.
Segurar a linha com a mão
esquerda.
Apoiar o peixe no chão de terra.
(o infeliz ainda se debate,
digladiando-se com seu triste destino)
Tirar um anzol com um apoio no
indicador e um giro do pulso.
Guardar o peixe num balde.
E
então, como se nada tivesse acontecido, o menino arremessa seu anzol já provido
de novo alimento novamente na água, petrificando-se mais uma vez.
Caio Mello
14/04/2012
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