Eu
não sei se consigo escrever muito agora. É muita correria aqui e tudo é muito
imprevisível. Eu prometi que escreveria para você, então estou escrevendo.
Enfim, não sei nem por onde começar. As coisas andam complicadas por esse lado.
Nós estamos conseguindo tomar os campos mais abertos ao leste. O sul já é
nosso. Mas ninguém disse que as coisas vão ficar mais fáceis daqui para frente.
A
Guerra da Influenza já chegou no seu
terceiro ano. Muita gente morreu aqui, é verdade. Eu nem sei como estou me
aguentando. Ficar muito tempo no campo de batalha... É... É como se as coisas
fossem perdendo o sentido aos poucos. Você não sabe mais quem você é. Também
não sabe muito bem quem são essas pessoas que te cercam.
Mas,
por outro lado... Você só sabe de verdade quem são as pessoas quando elas estão
morrendo. Eu me lembro bem desse dia: estávamos nós, três homens do exército,
no campo de batalha. E alguns soldados da Influenza
começaram a nos atacar. Foi de repente. Tudo muito rápido. Eu nem sei te
dizer em quantos eles eram. Foi assustador. Uma saraivada de tiros e o primeiro
de nós morreu.
Eu
e o outro sobrevivente nos escondemos num armazém antigo. Foi um jogo de
tocaia. Fomos matando um a um. Ninguém mais sabia quem era a caça e quem era o
caçador. Mas uma hora esse meu companheiro acabou sendo baleado no peito. Ele
tinha certeza de que ia morrer. Eu podia ver nos olhos dele. E, sabe... Essa
proximidade muda as pessoas. Ele chorou. Muito. Parecia uma criança
descontrolada. Disse que tinha terminado o namoro antes da guerra, mas que
sentia muita falta de todo mundo. Sentia falta do seu pai, da sua mãe, do seu
irmão... Ele não parava de chorar!
E
eu tive que ser forte. Tive que ser firme e salvar nós dois. Continuei matando
aqueles malditos da Influenza de
todos os modos que eu conseguia. Quando acabaram minhas balas, matei um
sufocado. Eu vi os olhos dele cegando enquanto morria. Não sei dizer também
quanto tempo nós ficamos naquele armazém. Mas nós ficamos um bom tempo. Era
fechado, eu não sabia do dia e da noite. E nós conseguimos. Lutamos, eu e meu
companheiro chorão. Permanecemos vivos.
E
eu acho que a vida é isso mesmo. Continuar vivendo. Aqui na trincheira, a gente
aprende isso logo cedo. Se você não se mantém equilibrado... Vai morrer. Seja
de bala, seja de faca, seja de loucura. Um pouco a gente já morre a cada dia,
só queremos ter certeza de que vamos deixar uma marca para alguém.
Quando
esse meu companheiro se recuperou, ele voltou a ser o mesmo combatente de
antes. Sim... Ele voltou a ser forte. Ou seja, no final, só eu conheço ele de
verdade. Talvez a futura esposa dele (já supondo que ele vai voltar vivo para o
Brasil) nunca o conheça tanto quanto eu conheci. A gente precisa ver as carnes
das pessoas para conhecer elas de verdade. Isso eu aprendi também.
E
aqui... Aqui faz muito frio. Esse país maldito parece um inverno sem fim. De
manhã, é frio. De tarde, é frio, de noite, é frio. É sempre frio a qualquer
hora e a qualquer lugar. Hoje mesmo, mais cedo, o sol decidiu botar o bico para
fora um pouco! Juro... Parecia um milagre. Me lembrou – bem de longe – as
praias do nosso país. Que saudades do mar, do verão. Saudades de ver gente!
Essa
é uma guerra muito estranha. Não que eu já tenha visto várias guerras na minha
vida, sou ainda novo, mas com certeza tem algo de errado nisso. Eu me sinto
como se estivesse no meio de uma cidade. Os cidadãos todos não se comunicam.
Todos rezam eternamente para um só deus: o deus-guerra. A máquina. E ninguém
mais entende de nada.
E
nós temos livros. Isso eles enviaram com a gente. Um saco cheio deles. Já li
bastante coisa nesses dias... Eu preciso ocupar minha cabeça. Manter as coisas
funcionando, sabe? Cabeça vazia é a oficina do diabo. E Deus que me livre! Já é
tanto sangue, tanta morte. Eu não consigo dormir direito. Acordo no meio da
noite. A garganta seca. Os olhos bem abertos. E lembro de todos aquele que
matei. Um a um, eles vão desfilando na minha mente. É um Carnaval funesto.
Nele, as fantasias são as próprias vísceras. Intestinos, pulmões, rins... Já vi
de tudo.
A
comida também é sempre igual. Não tem muito como variar. Sopa. Odeio sopa. Mas
é rápido, é fácil e dá pra aguar pra fazer durar por mais tempo. Por isso, eles
servem sopa para todo mundo a toda hora. Quem me dera fazer um churrasco...
Daqueles que eu fazia quando era mais novo, na casa de praia. Da sacada, a
gente via o mar... Que vista linda.
Espera.
Tem alguma coisa lá fora! Depois eu conti-
granada!
BALA BALA
BALABALABALA BALA
BALABALABALABALA BALA
BALA BALA
O
silêncio sobe as escadas.
Bandeiras
de cores verde, amarelo e azul
são
estendidas sobre os caixões.
Corpos-fuzis,
pobres.
Estertores
balísticos de jovens defuntos.
Assim é
a guerra:
sedenta,
tortuosa,
enferma.
Caio
Bio Mello
30/05/2013