quinta-feira, 30 de maio de 2013

Metáforas sobre a influenza - Terceiro dia



            Eu não sei se consigo escrever muito agora. É muita correria aqui e tudo é muito imprevisível. Eu prometi que escreveria para você, então estou escrevendo. Enfim, não sei nem por onde começar. As coisas andam complicadas por esse lado. Nós estamos conseguindo tomar os campos mais abertos ao leste. O sul já é nosso. Mas ninguém disse que as coisas vão ficar mais fáceis daqui para frente.
            A Guerra da Influenza já chegou no seu terceiro ano. Muita gente morreu aqui, é verdade. Eu nem sei como estou me aguentando. Ficar muito tempo no campo de batalha... É... É como se as coisas fossem perdendo o sentido aos poucos. Você não sabe mais quem você é. Também não sabe muito bem quem são essas pessoas que te cercam.
            Mas, por outro lado... Você só sabe de verdade quem são as pessoas quando elas estão morrendo. Eu me lembro bem desse dia: estávamos nós, três homens do exército, no campo de batalha. E alguns soldados da Influenza começaram a nos atacar. Foi de repente. Tudo muito rápido. Eu nem sei te dizer em quantos eles eram. Foi assustador. Uma saraivada de tiros e o primeiro de nós morreu.
            Eu e o outro sobrevivente nos escondemos num armazém antigo. Foi um jogo de tocaia. Fomos matando um a um. Ninguém mais sabia quem era a caça e quem era o caçador. Mas uma hora esse meu companheiro acabou sendo baleado no peito. Ele tinha certeza de que ia morrer. Eu podia ver nos olhos dele. E, sabe... Essa proximidade muda as pessoas. Ele chorou. Muito. Parecia uma criança descontrolada. Disse que tinha terminado o namoro antes da guerra, mas que sentia muita falta de todo mundo. Sentia falta do seu pai, da sua mãe, do seu irmão... Ele não parava de chorar!
            E eu tive que ser forte. Tive que ser firme e salvar nós dois. Continuei matando aqueles malditos da Influenza de todos os modos que eu conseguia. Quando acabaram minhas balas, matei um sufocado. Eu vi os olhos dele cegando enquanto morria. Não sei dizer também quanto tempo nós ficamos naquele armazém. Mas nós ficamos um bom tempo. Era fechado, eu não sabia do dia e da noite. E nós conseguimos. Lutamos, eu e meu companheiro chorão. Permanecemos vivos.
            E eu acho que a vida é isso mesmo. Continuar vivendo. Aqui na trincheira, a gente aprende isso logo cedo. Se você não se mantém equilibrado... Vai morrer. Seja de bala, seja de faca, seja de loucura. Um pouco a gente já morre a cada dia, só queremos ter certeza de que vamos deixar uma marca para alguém.
            Quando esse meu companheiro se recuperou, ele voltou a ser o mesmo combatente de antes. Sim... Ele voltou a ser forte. Ou seja, no final, só eu conheço ele de verdade. Talvez a futura esposa dele (já supondo que ele vai voltar vivo para o Brasil) nunca o conheça tanto quanto eu conheci. A gente precisa ver as carnes das pessoas para conhecer elas de verdade. Isso eu aprendi também.
            E aqui... Aqui faz muito frio. Esse país maldito parece um inverno sem fim. De manhã, é frio. De tarde, é frio, de noite, é frio. É sempre frio a qualquer hora e a qualquer lugar. Hoje mesmo, mais cedo, o sol decidiu botar o bico para fora um pouco! Juro... Parecia um milagre. Me lembrou – bem de longe – as praias do nosso país. Que saudades do mar, do verão. Saudades de ver gente!
            Essa é uma guerra muito estranha. Não que eu já tenha visto várias guerras na minha vida, sou ainda novo, mas com certeza tem algo de errado nisso. Eu me sinto como se estivesse no meio de uma cidade. Os cidadãos todos não se comunicam. Todos rezam eternamente para um só deus: o deus-guerra. A máquina. E ninguém mais entende de nada.
            E nós temos livros. Isso eles enviaram com a gente. Um saco cheio deles. Já li bastante coisa nesses dias... Eu preciso ocupar minha cabeça. Manter as coisas funcionando, sabe? Cabeça vazia é a oficina do diabo. E Deus que me livre! Já é tanto sangue, tanta morte. Eu não consigo dormir direito. Acordo no meio da noite. A garganta seca. Os olhos bem abertos. E lembro de todos aquele que matei. Um a um, eles vão desfilando na minha mente. É um Carnaval funesto. Nele, as fantasias são as próprias vísceras. Intestinos, pulmões, rins... Já vi de tudo.
            A comida também é sempre igual. Não tem muito como variar. Sopa. Odeio sopa. Mas é rápido, é fácil e dá pra aguar pra fazer durar por mais tempo. Por isso, eles servem sopa para todo mundo a toda hora. Quem me dera fazer um churrasco... Daqueles que eu fazia quando era mais novo, na casa de praia. Da sacada, a gente via o mar... Que vista linda.
            Espera. Tem alguma coisa lá fora! Depois eu conti-

                        granada!

BALA                                    BALA
            BALABALABALA                         BALA

BALABALABALABALA                                                 BALA
                        BALA BALA

O silêncio sobe as escadas.
Bandeiras de cores verde, amarelo e azul
são estendidas sobre os caixões.

Corpos-fuzis, pobres.
Estertores balísticos de jovens defuntos.
Assim é a guerra:
sedenta, tortuosa,
enferma.


Caio Bio Mello
30/05/2013

Nenhum comentário:

Postar um comentário