quarta-feira, 23 de março de 2011

Estúdio

Entro no estúdio e fecho a porta atrás de mim. Silêncio. Montanhas de coisas amontoam-se pelo cômodo. Casacos peludos, espadas afiadas, martelos, serras, uma cadeira quebrada ao canto. Vários frascos coloridos numa estante. Um cenário em miniatura ao fundo, uma luz incidindo sobre a cena. O teto, pintado de preto, brilha com suas estrelas. E a Lua bem no meio. Sento-me na mesinha noutro canto da sala. Um copo vazio me encara. Desvio. Levanto-me como se tivesse pressa, busco as chaves em meu bolso e abro um armário. Lá, palavras. Uma pontiaguda, outra ácida, outra laranja, mais uma jovial. Uma montanha desorganizada de palavras. O que fazer? Perco o equilíbrio, caindo sobre elas. Espalham-se rapidamente pelo chão. Que confusão.

ANFIURBE PATO DEDO
PENTASSÍLABO DESEJO VIOLÃO PSEUDO
NÓS MENINO...

Na parede, um letreiro de neon faz piscar em luzes verdes SOCIOVIDAR ininterruptamente. Sento-me novamente. Tantas palavras assim, todas me encarando... Coisa demais para um homem só. O que escrever?
Debruço-me sobre a régua métrica. Eu desejo sempre Desejo vontade A força de vida A necessidade ade empre... Empre? Emperrou a métrica. Essa palavra não cabe aqui. Quero serrá-la para ver como fica. A velha serra guarda-se quieta na parede oposta. Não parece muito animada para cortar qualquer coisa. Sua ferrugem expõe-lhe dores antigas. Minhas dores oxidaram minha serra. Sofreu ela por mim... Enfim. Vou até ela. Volto para a mesa. Vejamos... Emperrar. Emp. Errar. Errar fica legal, aparece outra palavra. Vou cortar Vejamos também. Vej. Amos. Vejemp Erramos. Erramos ficou muito bom, simples e construtivo. Mas voltei para uma palavra comum. Melhor procurar outra coisa.
Abro a geladeira dos radicais. Sub Supra Infra Inter Hiper Hipo... Hipoerrar. Parece uma doença. Do tipo hipotireoidismo. Entrerramos? Parece enterramos. Que droga. Vou jogar os cortes no lixo. E se... O liquidificador brilha de leve no escuro. Liquidificar algumas palavras parece-me torná-las solúveis, aprazíveis a olhares distantes.
Vou usar GATO e BOBO.

GATO BOBO
A GTO OB BO
GABOBOTO
BBTGOOA
AOO
A

Não sobrou nada. Demorei demais para tirá-las de lá. Sobrou-me um A. A vida. A felicidade. A carro. A homem. A mar. Guardo algumas.
Mas eu queria mesmo era falar sobre um sentimento. Um aperto de peito que não me deixa, um sufocamento distante que me arde, como se fosse uma necessidade. É, antes de tudo, uma necessidade desesperada. Mas é uma vontade complexa também que não sabe nem mesmo definir a si mesma. Sim! Não sei se é um medo, ou um desejo... Mas está ali, ainda que me incomodando de soslaio, sem nunca querer me olhar de frente. Impede meu sono, vaza meu sangue e não sabe do que é feita. É uma necessidade, com certeza.
Bom, então vamos começar:

A vida simples
desamparo-me com meus erros
a vagar pelo aço
a correr pelo asfalto.

Sigo a esmo
sei que preciso
necessito de...

Mas do que eu necessito? Não faz o menor sentido! Não é por falta de palavras, isso com certeza não. Vejo um bilhão delas em meu estúdio, todas ainda em estado de pureza. Consigo dar-lhes mil significados, dependendo da cor, da dobra, do tamanho. Não são elas que me fazem falta. Sou eu. Não sei me explicar.
Olho-me no espelho. Ele não me diz nada. Ali estou eu apenas. Preparo um café bem forte. Sem açúcar. Ele não me diz nada. Sento na cadeira mais uma vez, olho um prato vazio. Ele não me diz nada.

SOCIOVIDAR

A luz verde bate em meu rosto. Ele não me diz nada. Deixo o café pela metade ainda quente na mesa. Ele não me diz nada. Deito a cabeça, apoiando-me em meus braços. Durmo, finalmente. Em uma terra metafísica, há o imortal. Ele me diz tudo. Salta, voa, é forte. É paradoxal, imenso. Ele me diz tudo.

Caio Mello
23/03/2011

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