Um
relógio de ponteiro de parede conversa com uma caneta que está em cima da mesa.
Você, caneta, como ousa se aproximar assim de mim?
Eu? Não me aproximo de ninguém. Não pense que esse espaço aqui é seu.
Só vejo seu espaço na parede. No seu continuar de horas, minutos e segundos.
Não, não quero você aqui. Você vai complicar as coisas para mim.
Em que sentido?
Canetas são levianas... Passam sua tinta em tudo quanto é papel.
Expelem seu conteúdo e deixam-se efemeramente falecer com o fim da carga.
Melhor escrever o que eu quiser do que rodar as mesmas horas todos os
dias até minhas engrenagens enferrujarem.
Que absurdo! Você não sabe o que fala! Aposto que se considera uma
libertária.
Considero-me livre. Sinto-me livre. E acho que todos devem ser assim. A
vida foi feita para se multiplicar, as palavras foram feitas para serem
escritas. Mudanças precisam tomar curso.
Não. O curso já foi escrito muito antes de nós estarmos aqui. Ele será
sempre o mesmo, passando pelos mesmos pontos. Tudo que existe para nós são
essas mesmas ideias, essa mesma realidae. Não pense que poderá mudar o sistema
só porque conseguiu visualizá-lo. Você não vai mudar o mundo.
Mudar o mundo? Ninguém muda nada. Nós tomamos pequenos atos que, com o
tempo, vão fazer diferenças para nós. E, como pequenas ondas em um lago, essas
diferenças vão alcançar, com o tempo, o mundo.
Vivemos num circo, numa total contradição. Você só afirma isso porque
nunca teve que encarar a vida de verdade. Nunca teve que enfrentar a sua
bateria quase acabando, seus ponteiros quase morrendo, sem forças. Quando a sua
carga já estiver no fim, quero ver só se você não vai ter vontade de trocar de
carga com outra caneta mais jovem. Ser novo é muito fácil, muito simples. Mas,
infelizmente, o tempo passa...
Você que vive uma contradição. Não vive o presente: ao saber que pode
ser recarregado com novas baterias, nunca aproveita seu momento de verdade.
Você sempre sabe que ganhará novas energias e terá forças de seguir em frente.
Eu não: só tenho esta carga e é bem capaz de alguém me esquecer em uma mesa e
eu parar no lixo... Ou até em lugares piores. Já conversei com colegas que
tiveram suas cabeças mastigadas. E então? O que vão fazer? Foi o destino que os
fez sofrer desse modo... Quem somos nós para podermos falar contra o destino?
Será que me vale mesmo roubar a carga de outra caneta? Do meu próximo?
Assistirei a danada minguar logo aos poucos... E assim, perder sua utilidade
muito tenra. Diga-me, de que vale contar o tempo se você não vive?
De que vale soletrar o mundo se você também não o vive? As palavras que
você escreve jamais serão suas. Você é um fantoche nas mãos de pessoas. Pode muito
bem escrever um poema que vai mudar o século, ou o discurso de um presidente ou
uma estúpida lista de compras para o supermercado. Ou ainda pior: ser gasta num
jogo da forca!
Quem me gastem! Que me gastem! Morrerei feliz.
Eis que, num passe de mistério,
o vidro do relógio de ponteiro
abriu-se.
A caneta, por instantes,
emudeceu-se.
O ponteiro dos segundos largou
sua posição.
(por instantes perdeu-se o
cálculo)
A caneta escalou a parede.
Acomodou-se bem no lugar do ponteiro.
O ponteiro dos segundos desceu a
parede,
engoliu uma carga de tinta nova
e deixou-se estar em cima da
mesa.
Já estava pronto para escrever.
O vidro do relógio tornou a
fechar-se.
Os dois, resignados, passaram a
conviver.
E aqui estou eu, encarando meu
relógio de parede
cujo ponteiro dos segundos é uma
caneta
com carga de tinta quase nova.
Caio Mello
28/12/12