sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

O Relógio e a Caneta



            Um relógio de ponteiro de parede conversa com uma caneta que está em cima da mesa.

Você, caneta, como ousa se aproximar assim de mim?

Eu? Não me aproximo de ninguém. Não pense que esse espaço aqui é seu. Só vejo seu espaço na parede. No seu continuar de horas, minutos e segundos.

Não, não quero você aqui. Você vai complicar as coisas para mim.

Em que sentido?

Canetas são levianas... Passam sua tinta em tudo quanto é papel. Expelem seu conteúdo e deixam-se efemeramente falecer com o fim da carga.

Melhor escrever o que eu quiser do que rodar as mesmas horas todos os dias até minhas engrenagens enferrujarem.

Que absurdo! Você não sabe o que fala! Aposto que se considera uma libertária.

Considero-me livre. Sinto-me livre. E acho que todos devem ser assim. A vida foi feita para se multiplicar, as palavras foram feitas para serem escritas. Mudanças precisam tomar curso.

Não. O curso já foi escrito muito antes de nós estarmos aqui. Ele será sempre o mesmo, passando pelos mesmos pontos. Tudo que existe para nós são essas mesmas ideias, essa mesma realidae. Não pense que poderá mudar o sistema só porque conseguiu visualizá-lo. Você não vai mudar o mundo.

Mudar o mundo? Ninguém muda nada. Nós tomamos pequenos atos que, com o tempo, vão fazer diferenças para nós. E, como pequenas ondas em um lago, essas diferenças vão alcançar, com o tempo, o mundo.

Vivemos num circo, numa total contradição. Você só afirma isso porque nunca teve que encarar a vida de verdade. Nunca teve que enfrentar a sua bateria quase acabando, seus ponteiros quase morrendo, sem forças. Quando a sua carga já estiver no fim, quero ver só se você não vai ter vontade de trocar de carga com outra caneta mais jovem. Ser novo é muito fácil, muito simples. Mas, infelizmente, o tempo passa...

Você que vive uma contradição. Não vive o presente: ao saber que pode ser recarregado com novas baterias, nunca aproveita seu momento de verdade. Você sempre sabe que ganhará novas energias e terá forças de seguir em frente. Eu não: só tenho esta carga e é bem capaz de alguém me esquecer em uma mesa e eu parar no lixo... Ou até em lugares piores. Já conversei com colegas que tiveram suas cabeças mastigadas. E então? O que vão fazer? Foi o destino que os fez sofrer desse modo... Quem somos nós para podermos falar contra o destino? Será que me vale mesmo roubar a carga de outra caneta? Do meu próximo? Assistirei a danada minguar logo aos poucos... E assim, perder sua utilidade muito tenra. Diga-me, de que vale contar o tempo se você não vive?

De que vale soletrar o mundo se você também não o vive? As palavras que você escreve jamais serão suas. Você é um fantoche nas mãos de pessoas. Pode muito bem escrever um poema que vai mudar o século, ou o discurso de um presidente ou uma estúpida lista de compras para o supermercado. Ou ainda pior: ser gasta num jogo da forca!

Quem me gastem! Que me gastem! Morrerei feliz.

Eis que, num passe de mistério,
o vidro do relógio de ponteiro abriu-se.
A caneta, por instantes, emudeceu-se.

O ponteiro dos segundos largou sua posição.
(por instantes perdeu-se o cálculo)
A caneta escalou a parede.
Acomodou-se bem no lugar do ponteiro.

O ponteiro dos segundos desceu a parede,
engoliu uma carga de tinta nova
e deixou-se estar em cima da mesa.
Já estava pronto para escrever.

O vidro do relógio tornou a fechar-se.
Os dois, resignados, passaram a conviver.
E aqui estou eu, encarando meu relógio de parede
cujo ponteiro dos segundos é uma caneta
com carga de tinta quase nova.

Caio Mello
28/12/12

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