Era o dia 21 de dezembro de 2012.
Muitos boatos havia de algum tipo de cataclisma mundial. Forças magnéticas
sobre o globo terrestre, quedas de cometas gigantescos, atração gravitacional
fortíssima entre o sol e a Terra... Alguns governantes, precavando-se, criaram
silos para armazenamento de alimentos e grandes asilos subterrâneos. Padres,
bispos, rabinos, mães-de-santo: todos passavam rezas de última hora para os
fiéis. Nenhuma alma poderia ser perdida. Cientistas faziam cálculos matemáticos
infinitos para tentar prever qualquer evento, fosse cósmico ou meramente
terráqueo. Sondas e espaçonaves povoaram o espaço em busca de qualquer vida
alienígena que pudesse surgir numa tentativa de escravizar a humanidade. Tudo
parecia estar resolvido. Nada que o olho do homem não pudesse enxergar.
Como
tudo corria bem, cada indivíduo foi encontrar sua rotina. Venderam-se cafés,
assinaram-se contratos, rodaram-se filmes nos cinemas. O bar vendeu chopps a
preço de mercado. Grandes festas foram organizadas com temáticas do fim do
mundo.
Porém,
algo muito peculiar aconteceu.
Neste
exato dia (não há dados o suficiente que possam comprovar a hora precisa do
evento fatídico), todos os seres humanos vivos tiveram a mesma sensação no
mesmo instante. Era como se a alma tivesse sido arrancada da pele, segundo
relatos. Um sentimento de separação. O alcance do quotidiano perdeu força e a
metafísica tomou conta da existência. Então, um segundo, não muito mais do que
isso, tornou-se uma eternidade sem fim. Ninguém conversava, ninguém se
comunicava. O tempo não parecia estar sendo perdido, mas revirado. Era como se
a vida se esticasse, deformando-se numa forma homogênea. Significava ser tudo e
ser ao mesmo tempo.
Nesse
pequeno lapso de tempo, cada indivíduo conseguiu contemplar a si mesmo. E,
através do ínfimo âmago individual, o todo foi alcançado. Cada humano sentiu-se
mais conectado do que nunca a seus iguais. E a vida mostrou-se. Ela era muito
simples, muito fácil de ser compreendida. Contemplar a existência era muito natural, pois a realidade podia ser vista de longe. Como um mapa. Quando
estamos no chão, não sabemos o que pode nos cercar e quais caminhos podemos
tomar. Quando olhamos um mapa, podemos não saber o que há nos detalhes de cada
esquina, mas temos uma ótima visão geral de toda uma região. E essa região era
a humanidade.
Infelizmente,
as pessoas sentiram-se enojadas com o que viram. Perceberam que os caminhos não
faziam o menor sentido. Perceberam que a vida era curtíssima, que os planos
podiam parecer muito detalhados, mas eram quase totalmente regrados pelo acaso.
As vidas estavam tomadas pela racionalidade, pelas máquinas, pela otimização do
tempo. Era vísivel a degradação constante. Os momentos apodreciam cada vez
mais. As pessoas se encontravam cada vez menos. Os dias tornavam-se
infindáveis, com horas e mais horas passadas em serviços, produções, palestras
e almoços. Tudo o que antes podia ser mensurado, agora não fazia mais sentido.
Os horários de convívio com os amados eram extremamente diminutos. Amar era uma
pílula reservada para apenas certa ocasiões. As pessoas entederam que passavam
mais tempo com os colegas de trabalho e com seus clientes do que com seus
verdadeiros amigos e seus familiares. Descobriram que contavam cada segundo –
dominando-os – sem saber que, na verdade, os perdiam. A ideia de evolução,
vista de longe, era um câncer social. A otimização do espaço, do tempo, do
viver, era parasitária. As pessoas sentiram-se loucas. Viram-se berrando uns
com os outros, atropelando transeuntes distraídos, sentenciando outros à pena
de morte, torturando, queimando... A guerra ergueu-se por cima da ogiva nuclear.
Corpos apodrecidos empilharam-se. Na paz, alianças arquitetaram dominações
políticas. Os famintos morreram por inanição. Não bastasse isso: o dia-a-dia do
homem comum mostrou-se tirano. O conta-tempo, o conta-gotas, a conta-salário, o
não contar promessas, apesar de prometê-las. Um rodar de pinos tão certo que
tornou-se ensurdecedor. Todos ficaram surdos, mas não perceberam. Todos tinham
ficado cegos, mas não perceberam.
Não
poderia haver o fim do mundo. O mundo já tinha acabado. A sociedade cometera um
silencioso e tétrico suicídio coletivo. De longe, tudo era visível. Cadáveres
perambulavam pelas ruelas ignotas. Corpos desfeitos reinavam o mundo. Ossos
aparentes mastigavam a carne de seus próprios corpos. A autofagia. A
desexistência.
Por
fim, o segundo passou. Com as retinas ainda preenchidas com a visão do mundo,
as pessoas pararam. Os afazeres foram deixados de lado. Fórmulas, tabelas,
construções, embarcações... Aquele foi um dia de impacto. Estupefatos, não
havia quem se opusesse. Como num acordo tácito, ninguém conversou sobre o
assunto. Houve uma reconstrução coletiva.
Desde
então, a humanidade tomou outro curso. Abrimos amplos estudos para entender o
fenômeno do dia 21 de dezembro de 2012. Nada ainda foi respondido. Talvez não
precise ser respondido. Esse texto fica como um registro do nosso grande
primeiro passo. E tal dia para sempre será lembrado como o dia do fim do mundo.
E o começo de um novo. Hoje, temos fé que muitos outros virão.
Caio Mello
21/12/12
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