domingo, 10 de novembro de 2013

O mói-carne

Notícias correram rápido pela cidade portuária. Um animal fora visto não muito longe do porto. Um dorso colossal, dobrando a água e o tempo. Marinheiros perderam-se na sua busca. Barcos e mais barcos percorreram as lágrimas do oceano. Muitos morreram. Lendas se formaram. O que seria o monstro? Um demônio recém parido do inferno, prestes a dominar o mundo. Poucos meses depois, um pescador avistou o pagão correndo pela praia. Pernas terríveis. Forte como o próprio medo. Então, os entes familiares começaram a sumir. Um homem conseguiu escapar. Na luta, perdera um braço. Mas estava vivo. O sobrevivente permaneceu dias no hospital sem conseguir falar. E os ataques continuaram. Maléficos momentos pairaram sobre a cidade portuária. Não uma história digna de ser de fato, mas um mero fato digno de ser história. Os fotógrafos locais tentavam obter momentos da horripilância. Ninguém tinha sucesso. Não só pessoas, mas também animais começaram a morrer. Cachorros, gatos, cavalos, galinhas... Tudo era devorado. Um velho louco passou noites e noites no frio buscando o malfadado. Andava armado pelas areais da praia. Mas também nunca achou segredo algum. As mortes vazavam pelas portas uma a uma. Crianças perderam suas vidas. Os moradores da cidadela desesperavam-se. Já não sabiam mais o que fazer. O único sobrevivente foi melhorando com o tempo. Já se sentia bem melhor. O prefeito pediu para o ilustre manter um acompanhamento psicológico antes de vir a público contar sobre sua experiência com o vira-mundo. Instalaram-se diversas lâmpadas pela praia. Guardas foram distribuídos para fazer rondas pela madrugada. Atiradores de elite foram posicionados estrategicamente pelos quatro cantos do mapa. Mas as balas nunca bateram na pele dura do desalmado. Estaria ele de volta ao oceano? Estaria no esgoto? Escondido debaixo da terra? Num beco escuro, mais um corpo. Uma mulher. Seu rosto dilacerado. A família enterrou o cadáver num funesto momento de solidão coletiva. Botar panos quentes e lágrimas mornas num defunto jovialmente desfigurado. Era culpa do afamado. Muitas pessoas começaram a se mudar da cidade. Deixavam tudo para trás. Lojas, barcos, poupanças e pertences. Era melhor assim. O passado deve ser preterido. Um menino correu para o quarto dos pais em uma noite qualquer. Estava cedo e ele, cego. Era o intempestivo!! Impossível localizar aquela imensidão poente... Como um fantasma. Uma assombração coletiva. O medo espalhava-se compulsivamente. Ninguém mais conseguia permanecer em paz. O heroico sobrevivente finalmente terminara o seu tratamento. O doutor Fulano que o acompanhou chamou o prefeito um dia para conversar. "Nosso batalhador sofre sequelas além do imaginável... O senhor não acreditaria. Ele está louco. Completamente fora de sua razão." Que desespero... O único que desvendou o segredo da visão do mal-querente agora já não poderia explicar como se mantivera vivo! Mais meses pularam o calendário. Mortes e mortes e mortes... Sempre à espreita. Crianças, velhos e adultos... Ninguém era poupado. Não havia horário nem destino. Os corpos surgiam no meio da rua, cobertos de sangue e moscas zuzurrantes. O líder do executivo declarou estado de sítio na cidade. Era melhor por um fim àquilo tudo. Foram criados toques de recolher, limites e proibições. Álcool não poderia ser mais ingerido. Crianças não poderiam mais andar sozinhas pela rua. E mesmo assim... O desdito continuou a matar. Desesperado, o prefeito não viu outra saída senão conversar com o sobrevivente. Sua esperança era, em meio à loucura, desvendar algum traço de clareza, de objetivo em seu discurso. "Sobrevivente, preciso que você me conte agora sobre o devorador. Quero que me conte com detalhes como sobreviveu." Eis a resposta, curta, seca e óbvia do heroico restador: "Não tenho nada para falar sobre o abominável. Eu nunca lutei com tal bicho. Não lutei porque ele não existe. Errados são os homens. Todos eles. Foi contra eles que lutei. E sobrevivi."

Caio Bio Mello
10/11/2013

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