terça-feira, 22 de dezembro de 2015

A bailarina de piche

Havia diversos boatos (mitologias)
sobre sua origem.
Uns diziam que seu criador
morrera antes de completar sua obra.
Outros, afirmavam que ela havia brotado do lodo,
ou de algum submundo inaceitável.

Seu corpo inconstante mutava-se
a cada minuto.
Sua pele de betume
nunca poderia reluzir
como as lantejoulas das demais bailarinas.

Por isso, a companhia
mantinha a bailarina de piche atrás dos palcos.
Ela não poderia, jamais, participar de uma apresentação.
Seu corpo grotesco – que mal conseguia se manter uno –
não pertencia à glória e ao público.
Ele deveria viver em segredo.

No princípio, a pequena acreditou no
que os outros lhe diziam.
Todos repetiam o mesmo tom:
“Ninguém gostaria de te ver,
piche não atrai e você não sorri direito”.
Repetiam, em uníssono, a sua feiura.
E, por um tempo, chegou mesmo a crer
que era horrenda.

Ela ficava atrás dos palcos, escondia o rosto,
puxava as cordas, acertava a iluminação
e fazia o inimaginável para não ser avistada
pelo grande público.
Para ocultar o horror de seu corpo viscoso.

Porém, algo em seu peito borbulhante
lhe dizia o contrário.
Ela tinha um instinto, um pressentimento,
de que a beleza, a vida e a morte
não são decididas por outras pessoas.
Ela seria quão bela desejasse ser,
independentemente do que lhe dissessem.

Ela tinha certeza disso.

Durante o verão, a companhia se encontrava com dificuldades
financeiras e investiu em propaganda e, por isso,
colocou todas as bailarinas (as mais belas)
nas ruas para angariar espectadores.

Naquela noite, a casa estava quase lotada,
o esforço, enfim, dava alguma resposta.
Não havia espaço para erros no espetáculo,
cada passo deveria ser frio e calculado.

O primeiro ato correu tranquilo, as bailarinas
se congelavam em poses mil,
pernas para o ar, rodopios tímidos
e aplausos abafados.
Mas havia algo que faltava ao público...

Então, de espanto, entre o primeiro e o segundo ato,
todas as luzes
se apagaram e o palco quedou-se inerte.

Quando os holofotes se reacenderam,
todas as lâmpadas estavam voltadas para uma figura,
pequenina e solitária,
que permanecia no meio do palco gigantesco.
Ao fundo, o som da vitrola ribombou automático.

A bailarina de piche, então,
realizou rodopios, piruetas,
esticou os braços, revirou os dedos.
A cada salto imenso que buscava,
seu corpo caía ao chão e se desmantelava.
Mas ela não temia – sabia que sua química
permitia a recomposição em instantes.

Ela era selvagem. Sorria e corria.
As outras bailarinas, atônitas, buscavam nos pés dela
o que nunca haviam encontrado em si: liberdade.
A bailarina de piche não tinha pudores,
não tinha medo de errar, não sofria pela imprecisão.

Pelo contrário: ela queria ser imperfeita,
desejava ser incompleta.
Transparecia a dança do fundo de seu coração de breu e paixão.

Tanto saltava que parecia alada.
Seu corpo era ágil como um puma negro.
O público, de início estarrecido, passou a se deliciar
com a performance. Ninguém jamais demonstrara tanta coragem.

O corpo de piche era, sim, capaz de brilhar.
Nem todo belo é lindo – o belo é sincero
e, ao final do espetáculo,
a bailarina de piche foi ovacionada.
Ela permanecia, gloriosa,
em meio às infinitas poças de sujeira
que se espalhavam pelo palco.

A noite foi um sucesso e a companhia
arrecadou como nunca. Cada nova
apresentação da bailarina de piche seria uma casa cheia!

Porém, para o estarrecimento de todos,
a pequena afirmou e repetiu que nunca mais
faria qualquer apresentação, para qualquer público.
Ninguém foi capaz de demovê-la.

E, todas as vezes que a questionavam por que parou no auge,
ela respondia de pronto:
Eu não nasci para brilhar,
mas sim para existir. E eu existo.

Caio Bio Mello

22/12/2015

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