Havia
diversos boatos (mitologias)
sobre
sua origem.
Uns
diziam que seu criador
morrera
antes de completar sua obra.
Outros,
afirmavam que ela havia brotado do lodo,
ou
de algum submundo inaceitável.
Seu
corpo inconstante mutava-se
a
cada minuto.
Sua
pele de betume
nunca
poderia reluzir
como
as lantejoulas das demais bailarinas.
Por
isso, a companhia
mantinha
a bailarina de piche atrás dos palcos.
Ela
não poderia, jamais, participar de uma apresentação.
Seu
corpo grotesco – que mal conseguia se manter uno –
não
pertencia à glória e ao público.
Ele
deveria viver em segredo.
No
princípio, a pequena acreditou no
que
os outros lhe diziam.
Todos
repetiam o mesmo tom:
“Ninguém gostaria de te ver,
piche não atrai e você não sorri
direito”.
Repetiam,
em uníssono, a sua feiura.
E,
por um tempo, chegou mesmo a crer
que
era horrenda.
Ela
ficava atrás dos palcos, escondia o rosto,
puxava
as cordas, acertava a iluminação
e
fazia o inimaginável para não ser avistada
pelo
grande público.
Para
ocultar o horror de seu corpo viscoso.
Porém,
algo em seu peito borbulhante
lhe
dizia o contrário.
Ela
tinha um instinto, um pressentimento,
de
que a beleza, a vida e a morte
não
são decididas por outras pessoas.
Ela
seria quão bela desejasse ser,
independentemente
do que lhe dissessem.
Ela
tinha certeza disso.
Durante
o verão, a companhia se encontrava com dificuldades
financeiras
e investiu em propaganda e, por isso,
colocou
todas as bailarinas (as mais belas)
nas
ruas para angariar espectadores.
Naquela
noite, a casa estava quase lotada,
o
esforço, enfim, dava alguma resposta.
Não
havia espaço para erros no espetáculo,
cada
passo deveria ser frio e calculado.
O
primeiro ato correu tranquilo, as bailarinas
se
congelavam em poses mil,
pernas
para o ar, rodopios tímidos
e
aplausos abafados.
Mas
havia algo que faltava ao público...
Então,
de espanto, entre o primeiro e o segundo ato,
todas
as luzes
se
apagaram e o palco quedou-se inerte.
Quando
os holofotes se reacenderam,
todas
as lâmpadas estavam voltadas para uma figura,
pequenina
e solitária,
que
permanecia no meio do palco gigantesco.
Ao
fundo, o som da vitrola ribombou automático.
A
bailarina de piche, então,
realizou
rodopios, piruetas,
esticou
os braços, revirou os dedos.
A
cada salto imenso que buscava,
seu
corpo caía ao chão e se desmantelava.
Mas
ela não temia – sabia que sua química
permitia
a recomposição em instantes.
Ela
era selvagem. Sorria e corria.
As
outras bailarinas, atônitas, buscavam nos pés dela
o
que nunca haviam encontrado em si: liberdade.
A
bailarina de piche não tinha pudores,
não
tinha medo de errar, não sofria pela imprecisão.
Pelo
contrário: ela queria ser imperfeita,
desejava
ser incompleta.
Transparecia
a dança do fundo de seu coração de breu e paixão.
Tanto
saltava que parecia alada.
Seu
corpo era ágil como um puma negro.
O
público, de início estarrecido, passou a se deliciar
com
a performance. Ninguém jamais demonstrara tanta coragem.
O
corpo de piche era, sim, capaz de brilhar.
Nem
todo belo é lindo – o belo é sincero
e,
ao final do espetáculo,
a
bailarina de piche foi ovacionada.
Ela
permanecia, gloriosa,
em
meio às infinitas poças de sujeira
que
se espalhavam pelo palco.
A
noite foi um sucesso e a companhia
arrecadou
como nunca. Cada nova
apresentação
da bailarina de piche seria uma casa cheia!
Porém,
para o estarrecimento de todos,
a
pequena afirmou e repetiu que nunca mais
faria
qualquer apresentação, para qualquer público.
Ninguém
foi capaz de demovê-la.
E,
todas as vezes que a questionavam por que parou no auge,
ela
respondia de pronto:
Eu não nasci para brilhar,
mas sim para existir. E eu existo.
Caio
Bio Mello
22/12/2015