segunda-feira, 2 de julho de 2012

Mundo


O que era, de início, uma folha de papel
dobrou-se para formar um barco.
O barco, ainda que leve e fino,
deitou na água
e deixou-se levar pela correnteza.

Antes que a chuva dobrasse seu corpo delicado,
o pequeno barco saltou para fora da água.
Agora, ele era um cavalo
que corria veloz pelos campos.

O cavalo saltava, arfando seu rumo.
Na parada da pastagem,
o animal mirou o sol.
Era agora uma águia

que voava solta encarando o mundo
lá do alto, onde não podem ver os distantes.
Então a águia cortou o mundo e transformou-se
num vulcão que cuspia fumaça e fogo.

O vulcão rugia sua vontade,
cuspia sua lava e mandava no mundo.
Mas aos poucos ele esfriou e
acabou se transformando numa pedra.

A pedra deixou-se cair para perto de um riacho
e ela rolou ao longo dos anos até para numa cachoeira.
No fundo do lago da cachoeira, a pedra
foi-se desfazendo em pequenos pedaços com a força da água.

Os pequenos grãos foram povoando a terra
e alimentando as plantas que alimentariam os animais.
O que sobrou da pedra foi um pequeno átamo
que encontrou-se preso numa máquina.

Na máquina claustrofóbica, o átomo
foi bombardeado por um próton
e ele explodiu, liberando muita energia.
Lágrimas de crianças rolaram pelo mundo.

A energia dissipou-se, grudou nas pessoas,
mudou vidas.
Depois de um tempo, ela foi se diluindo
e acabou gerando eletricidade.

A corrente elétrica subiu por cabos e fios;
acabou alimentando o amplificador de um show
de uma banda muito grande para muitas pessoas.
O som alto contagiava a todos.

As pessoas mantinham-se unidas,
todas numa loucura coletiva,
num regozijo plural
e democrático.

Então o povo cresceu e tornou-se mundo.
Um mundo de gente, infinitos rostos
muitos desconhecidos, nunca conexos,
mas todos ligados pelo mesmo fio.

Todos votavam, todos encaravam a morte de perto.
Derrubaram-se governos. Morreram estadistas.
O povo estava livre e tremulava suas bandeiras,
entoando hinos e louvores.

Os hinos ecoaram pelos céus e atingiram o espaço sideral.
As estrelas todas entravam em passeata.
Todas procuravam sua Pasárgada.
Umas atrás das outras, sempre querendo sua vontade.

Aquele fim que nunca atingiam,
aquela imensidão de se perder de vistas.
Não queremos o infinito, queremos o nosso finito
diziam elas sobre como ser amigo do rei.

Mas o rei já não gostava muito mais de conversa.
Perdera muito de sua importância por causa da evolução.
As coisas não eram fixistas nem deveriam ser.
Ele sobrara mais como rei momo.

E o momo festejava no nordeste brasileiro como nenhum outro.
Pulava, gritava, ria-se do povo a aplaudir.
Os aplausos e os trompetes, por sua vez,
riam-se das pequenezas da humanidade.

Trompetes, trombones, flautas doces...
Aproveitavam seu momento de silêncio
para abrir mais uma rodada de truco.
E o rei mandava no valete, querendo ser momo.

A manilha crescia com o tempo
porque sabia esperar a hora certa.
A virada da corta, o bom engano,
vitória da corte.

Mas a corte também já não admitia lordes.
Admitia sorveteiros, pasteleiros e alguns profissionais liberais.
Porque o mercado globalizado perdia seu rumo
ou, talvez, ganhava outro rumo.

O rumo partia a esmo numa tarde de inverno.
Levava um casaco fino porque sabia que perderia a coragem
antes mesmo de chegar a lugar algum.
E o lugar continuava distante, utópico.

A utopia mantinha-se como fim.
Era o limite da visão, o limite dos sonhos.
A existência abstrata de um limite jamais alcançável,
mas sempre tangível.

O limite, então, era só a diferença entre o perfeito
e o imperfeito.
Mas a perfeição, na verdader, era apenas o limite
da imperfeição.

E imperfeito era o mundo. Era tudo.
As amizades, as pessoas, os cálculos, a ciência, a arte, o Fusca...
Os amigos arranhavam os corações dos outros.
Achavam a certa da honestidade apenas no profundo oceano etílico.

Bebiam até perderem as noções de vista,
abriam bem os olhos e diziam tudo que viesse à mente.
Batiam no peito,
dizendo ter razão.

Mas a razão e o peito andavam muito brigados.
O peito dizia-se o mais corajoso, mais probo dos dois.
Já a razão acha o equilíbrio nas coisas.
Sabia andar na corda bamba.

Mas o bêbado equilibrista entornava
mais uma dose diária do liquor do tédio.
Ficava horas e horas e horas e horas sentado na praça
choramingando algumas palavras para uma pomba
que passava futucando o lixo.

O lixo e o seu animal.
Meu Deus, era um homem.
A ideia, a flexibilidade.
Tristeza encarando a vida de soslaio.

Mas a vida andava muito ocupada.
Era contada por minutos, segundos, milionésimos de milésimos de centésimos
de segundo!
Um sopro, um sussurro e tudo se perdia.

O sussurro era muito utilizado pelos namorados.
Ali com os astutos à espreita.
O esconderijo mais rígido, o coração.
Riam-se na vontade dos corpos.

O corpo, pobre. Muitas vezes massacrado.
Semi-morto, quase vivo.
A inanição pacientemente esperando
mais um dia sem almoço.

Os corpos magros de crianças que não podiam brincar.
Olhos turvos, ossos salientes.
Um futuro que era passado e queria deixar
de ser presente.

O futuro, então? A Deus pertencia.
O chute que faziam na maneira de saber o amanhã.
Este, sim. O doce raiar do dia ainda vindouro
como o ouro dos lábios.

Despontando à prima volta
alguns toscos tons que borbulhavam pelo vento
evitando colidirem tão diretamente
com os olhos ainda fechados.

As vistas, o que guardavam? O que haviam visto?
Um homem nascer, uma criança chorar, um furto,
um roubo de beijo mal nutrido.
Ou então mais um defunto.

A lista do obituário
elencava a ladainha tétrica dos defuntos.
Morreu doutor fulano não se sabe de que nem se sabe de onde
nem sabemos quem vai enterrá-lo.

Mas doutor fulano era dono de carros muito chiques.
Suposto isso, a família que se manifeste.
Mas fulano era mais um na lista.
Nomes que se perfilavam na lúgubre sequência.

O funesto dia em os vivos liam os mortos.
Morriam muito mais no papel do que na carne.
O papel morria diversas vezes, toda impressão nova.
E a impressão geral do povo era de choque.

Uma onda de terror assolava a cidade.
Todos perdidos.
Meu Deus, onde isso vai parar?
Madames andavam de carro blindado.

Os carros sentiam dores nas engrenagens.
O bater dos pinos, arder das rodas,
falhar a direção hidráulica.
O fim do dia era o fim do mundo.

Mas será que tudo acabaria?
Ali, num café, refletia a dona num sábado à tarde.
Se o mundo acabasse, bem que poderia ser numa festa.
Naqueles momentos de pura loucura.

Beijando o homem dos seus sonhos,
sem comer esses bolinhos que engordam tanto.
Até as crianças nasciam obesas naquela região.
Comiam tanto que gestavam irmãos nunca paridos.

Carregavam os pecados dos pais
com costelas juvenis.
A juventude estava perdida, como sempre.
Os olhos antigos sempre refletiam sobre o futuro.

E sempre concluíam que o futuro seria muito pior.
Afinal, a nova geração era dotada de novos valores.
Pífios, fracos, incultos.
E jamais seriam a cultura.

A cultura pertencia ao povo.
Era tudo, era muito.
O laço no dedo
era o rodapé da orelha.

E a orelha andava ouvindo demais.
Políticos e suas falácias,
breves momentos de pânico no palanque.
Aquela mentira muito bem dita.

Ou as meias verdades que podiam povoar a mente
do homem barbudo na mesa de bar.
O jogo é hoje, a final na quarta.
Quem sabe a bola corre solta.

Os meninos jogavam bem,
mas já não havia aquele futebol arte.
O Pelé tornou-se mais lenda do que homem,
mais bola na fala do que fala na bola.

E a bola rolava para dentro do gol
num chute de trivela muito bem dado
para que se pudesse esquecer dos impostos.
A imposição do gasto coletivo.

O contrato social, quebra de paridade
no qual o governo governava
e o povo fazia qualquer outra coisa
que não tinha o menor sentido.

Mas o sentido já não podia mais se encontrar.
Ele entendia-se mais como mentira.
Muitas pessoas tentaram se encontrar,
mas o mapa era curto.

A única coisa que se via ao certo
era a Ilha Desconhecida, na busca por si mesma.
Quero um barco, digo ao rei,
que me leve para Pasárgada de novo.

Queriam o oceano divido.
O mar gelado em picolés.
Queriam dividir, conquistar
e talvez alugar a Lua.

Mas ninguém voltou lá em cima.
Não tinha ouro, não tinha mulheres bonitas
e nenhum cabaré que valesse a pena.
E, se houvesse, o governo não contaria.

Mas no cabaré as putas tristes não sabiam mais dançar o tango.
O bafo de cana dos velhos carcomidos abafava-lhes o dia.
Dormiam pesadelos na cama solitária
de quem já muito se deitou ao longo do dia.

O dia era finito, com suas vinte e quatro horas
 tentando tiquetaquear algo que valesse a pena.
Mas tudo que encontrava era a rudeza das coisas.
O mundo era rude. E a vida irônica.

A vida era irônica a ponto de se rir dos passantes.
Afinal, ela não envelhecia nunca.
Quem caía era a pele e os homens
e o governos e as árvores cortadas.

Os lenhadores econtravam-se de férias
porque estavam perdendo espaço no mercado
para ambientalistas que escreviam
com giz de cera para não precisar de lápis.

O lápis da menina dourada
desenhava os sonhos do menino.
Ambos, sentados, num salto dinâmico
àquilo que se agradece.

O agradecido passava de bonde nos tempos idos,
acenava com uma mão muito bem lavada
e seguia seu caminho
pelo trem das onze horas.


E tudo, tudo mesmo,
com seus vários lados.
O pé, ao pé, de pé, objeto e pé.
O fim, subterfúgio nosso.

Diziam que ele enlouquecera.
Mas, de fato, ele sabia imitar
muito bem
o teatro da vida.

Caio Mello
02/07/2012

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